Clube das Quatro

Kat Torres: de guru espiritual a condenada criminal

Guru, bruxa, líder de seita, Kat, Deus ou Jesus são apenas algumas das alcunhas usadas em Katiuscia Torres Soares, a influenciadora digital, coach carismática e uma guru de bem-estar, que viu sua ascensão meteórica se transformar em uma queda dramática e (super) perturbadora.

A ascensão de Kat Torres

Fonte: Reprodução

A notoriedade de Kat Torres se iniciou aos 12 anos de idade, quando ela iniciou uma carreira de modelo. Aos 18 anos, ela aceitou o convite feito por uma agência europeia para atuar como modelo e atriz e saiu do Brasil. Desde então, ela sempre aparecia posando de lingeries para diferentes empresas e em vários países. Daí, sua carreia decolou!

Devido ao sucesso profissional, ela passou a ter um contato cada vez mais frequente com diversas celebridades e fez conexões com várias pessoas com status, chamando cada vez mais atenção da mídia. 

A mídia brasileira, especificamente, voltou os olhos a Kat quando ela começou a aparecer em fotos ao lado do famoso ator Leonardo DiCaprio, insinuando um possível affair entre os dois.

Após se mudar para os Estados Unidos, e com a fama em ascensão, Kat Torres começou a atrair a atenção de muitos internautas, que começaram segui-la nas redes sociais. Com as funcionalidades e alcance do Instagram, ela interagia com seus seguidores sempre postando frases motivacionais, respondendo a caixinhas de pergunta e sempre exibindo uma vida aparentemente perfeita e muito luxuosa.

Algumas de suas seguidoras alegam depoimentos de que ela sempre aparecia “muito linda e sempre de alto astral”, o que favoreceu a criação de uma imagem forte de si própria, chamando cada vez mais a atenção de diversos jovens, principalmente meninas/mulheres.

Em face disso, ela obteve milhões de seguidores e, então, começou a divulgar seu primeiro livro: “A voz: uma história de superação, crescimento espiritual e felicidade”.

Após isso, ela iniciou a prestar serviços de coaching, ou seja, um processo de consultoria em que o cliente – denominado coach – busca melhorar o desempenho de uma pessoa para o alcance de uma determinada meta ou objetivo. Isso a consolidou como uma influenciadora de bem-estar e autocuidado em pleno 2017, ano em que essa prática começou a ficar em alta no mundo digital, ainda que a pessoa prestadora desse tipo de serviço não tivesse qualificação profissional para tanto. “Eu nasci Life Coach”, dizia Kat na época.

“Ela falava que lia a mente, que escutava a voz e, por causa dessa voz, ela conseguia te olhar e te guiar aonde você queria chegar”, afirmou Letícia Tupinambá, ex-cliente de Kat Torres.

Kat, para conseguir o sucesso que teve como coach, buscou inspiração em diversos líderes espirituais e gurus de vários países. Seu ex-marido americano, Colborn Bell, afirmou que, em determinado momento, eles “passaram um tempo no Brasil visitando diferentes igrejas e estudando diferentes práticas religiosas”.

Em decorrência disso, ela passou a admirar o medium brasileiro João de Deus, o qual foi condenado recentemente a quase 500 anos por uma série de crimes de estupr*s. Além dele, ela tinha como referência o coach americano Tony Robbins. A partir disso, ela decidiu de vez se tornar uma coach espiritual.

Relatos de algumas das diversas vítimas de Kat Torres:

“Ela [Kat] compartilhava muitos textos sobre espiritualidade, reflexões, sobre a vida, misticismo… Ela me fez sentir especial. Eu sentia que tínhamos uma conexão única, só eu e ela. Eu sempre levava as minhas decisões a ela primeiro”, afirmou Amanda.

“Para mim, ela parecia uma pessoa de confiança, quem entendia minha dor. Eu já tinha passado por várias coisas, eu estava com muitos problemas de saúde. Decidi buscar o ramo espiritual, onde encontrei a Kat que se dizia uma pessoa espiritualizada”, relatou Ana.

“Durante nossos atendimentos, a Kat comentou sobre as suas entidades, o que elas queriam e como se comunicavam. Para quem era cristão, ela dizia que a entidade era Deus; aos céticos, ela dizia que eram momentos e memórias passadas”, informou Desirrê.

“Eu recebi uma mensagem da assistente [da Kat] falando que ‘a Kat tava pensando muito em você, ela tem coisas para te falar porque ouviu a voz. Você pode vir para uma consulta?’ e, se eu tivesse dinheiro, eu ia até ela. Eu devo ter gastado uns $ 3 mil dólares talvez”, contou Letícia.

Estas vítimas confiavam em Kat e algumas delas [pasmem!] ficaram dependentes, porém não sabiam que, por trás dos serviços prestados, havia muitas mentiras, meias verdades e a sede por dinheiro

Kat chegou a isolar suas clientes de diferentes maneiras, pressionando-as a se locomoverem para onde ela estava e/ou aonde ia. Assim, ela convenceu algumas de suas seguidoras mais próximas a se mudarem para viver no Texas, com ela.

Uma delas, Desirrê, escreveu um livro chamado @Searching Desirrê: minha jornada pela liberdade, no qual narra sua experiência estando traficada por Kat. Em uma das passagens da obra, Desirrê narra:

“Ela me ligou chorando, falando que sua saúde estava abalada e que ela tava tendo pensamentos suicidas. Ela queria que eu fosse ao Texas e ficasse com ela por um tempo. Ela disse que não tinha mais ninguém além do seu recém-marido e que eu era a pessoa em que ela mais confiava. Ela disse que eu precisava estar no Texas no dia seguinte. Conversamos por 2 horas e, sem que eu tivesse tempo de processar o que estava acontecendo, ela comprou as minhas passagens”.

Aliciamento, tráfico humano e escravidão

Com Desirrê e mais algumas garotas, Kat apresentou nas redes o que ela chamou de “Clã das Bruxas”, composto por Desirrê, Letícia Maia, Sol [nome fictício] e pelo menos mais quatro outras mulheres compelidas, e, claro, encabeçado por Kat Torres. Havia descrições sob suas fotos nas redes descrevendo os supostos poderes e habilidades de cada uma delas.

Estas meninas/mulheres estavam sendo, na verdade, traficadas e obrigadas a trabalhar para Kat, sob a promessa de recompensas, financeiras e/ou espirituais. Kat as persuadia a fazer diversas atividades e jamais as pagava, embora continuasse ostentando uma vida luxuosa nas redes.

“A gente trabalha aqui 24 horas do dia e tem que trabalhar mesmo. Tem que acordar às 5h da manhã e ir dormir às 2h da manhã. E assim é para todas as pessoas da casa. Então, não vai achando que vai chegar aqui e vai ser moleza! Queridos, acabou o sentimentalismo”, alegou Kat Torres em um story de seu Instagram. 

No espaço da casa destinado a cultos e bruxarias, haviam diversos artefatos relacionados a algumas religiosidades, tais como cristas, cartas de tarô, velas e outros. Nesse cômodo, ela levava as clientes e, em rituais nos quais ela ouvia a voz, coagia essas vítimas a fazer alguma atividade, como estar em determinado lugar ou se encontrar com determinada pessoa. Desirrê, por exemplo, conta que “foi obrigada por Kat a trabalhar no clube de strip-tease Maximus Men’s Club, achando que seria algo temporário”.

Um outro modus operandi de Kat para atrair mais vítimas era a oferta de banhos espirituais, os quais tinham de ser realizados presencialmente na casa dela, no Texas.

Se a vítima apresentasse resistência, Kat passava a discursar sobre como a pessoa estaria perdendo uma grande oportunidade de crescimento na vida, a ameaçar cobrar por todos os supostos gastos tidos com quem que já tivesse viajado até ela, bem como a amaldiçoá-la, de modo a prender as pessoas a si como em uma teia de aranha.

Na casa, algumas das vítimas conviviam entre si, mas sob rigorosas “leis” impostas por Kat. A título de exemplo, as vítimas eram proibidas de conversar entre si e só podiam sair ou andar pelos cômodos com a permissão de Kat. Ela forçava essas vítimas a lhe entregarem seu dinheiro, porque “era mais seguro”, e seus pertences, como documentos e passaportes. Em suma, Kat assumia o controle total sobre elas.

O alvo principal de Kat eram vítimas meninas, a quem ela destinava planos de prostituição. Dessa maneira, Kat criou vários perfis das vítimas em sites de acompanhantes, ainda que a prostituição fosse um crime no Texas.

Desirrê conta que, “quando cogitou abandonar o trabalho no clube de strip e os programas do site, Kat ameaçou a entregá-la para a polícia”. Ela era obrigada a bater metas cada vez maiores todos os dias nessas ocupações e, em decorrência disso, teve de dormir na rua quando não as cumpria.

Resumidamente, Kat Torres utilizava uma combinação de carisma, confiança, manipulação psicológica e exploração das vulnerabilidades das pessoas para aliciá-las. Uma vez que a vítima estivesse persuadida, ela fazia com ela o que queria.

O desmanche de Kat Torres

A situação se agravou quando Desirrê e Letícia começaram a ser ameaçadas publicamente por Kat, que fez postagens atacando-as nas redes sociais, o que intensificou a sensação de insegurança e temor.

Sem que Kat soubesse, as vítimas Ana e Sol decidiram ir até a polícia para prestar uma queixa-crime contra ela. Enquanto isso, as outras garotas Desirrê e Letícia perderam totalmente o contato com seus familiares. Por conta disso, as famílias de Desirrê e Letícia, preocupadas com seu desaparecimento, iniciaram uma campanha nas redes sociais para localizá-las, revelando a angústia e a busca por respostas.

Pressionada por barulho cada vez maior nas redes, Kat então coagiu Desirrê e Letícia a postarem vídeos próprios, afirmando que estavam bem e que era para seus familiares, amigos e internautas pararem de “persegui-las”.

No entanto, esses vídeos demonstravam um comportamento estranho das meninas, como se estivessem dopadas e atordoadas.

Especificamente no vídeo de Letícia, ela chega a apelar a Mark Zuckerberg, diretor executivo do Facebook, e Vladimir Putin, Presidente da Rússia, para ajudarem Kat. Tudo isso aumentou a preocupação com as vítimas na web.

A polícia local investigou Kat, Letícia e Desirrê. Um agente policial relatou que as meninas apresentavam um comportamento muito introspectivo e de desconfiança na polícia, algo comum entre vítimas de tráfico de pessoas.

As três foram detidas pela polícia, mas logo Desirrê e Letícia foram liberadas. Kat, presa, foi deportada ao Brasil sob o enquadramento de manter pessoas em condições análogas à escravidão.

No Brasil, ela foi denunciada por tráfico humano, exploração sexual e trabalho escravo, tendo sido encarcerada desde novembro de 2022, em Bangu, Rio de Janeiro. 

O primeiro julgamento de Kat, baseado no caso Desirrê, ocorreu em 2023, sob segredo de justiça, e nele várias mulheres, que alegaram ter sido, também, vítimas, compareceram para testemunhar. 

Primeira entrevista na prisão

Kat, em sua primeira entrevista, concedida mediante decisão judicial após um ano e meio de prisão, negou todas as acusações feitas contra ela.

“Elas [as meninas vítimas] foram para lá [Texas] para se prostituir. Se prostituíram e falaram que fui eu que fiz isso”, argumentou Kat.

Em suma, ela confirmou que se considera uma guru, capaz de influenciar a mente das pessoas, mas negou que tenha explorado pessoas. Em contrapartida, várias mulheres relatam ainda sofrerem, até hoje, estresse pós-traumático devido ao elo com Kat.

A condenação

Em 28 de junho de 2024, a decisão condenatória de Kat foi homologada pela Justiça Federal e ela recebeu duas penas: a primeira de 2 anos e 9 meses de reclusão por tráfico de pessoas; e, a segunda, de 5 anos e 3 meses de reclusão por redução à condição análoga à escravidão. Somadas, as penas totalizaram mais de 8 anos de prisão. Portanto, concluindo que ela atraiu Desirrê aos EUA a fim de a explorar sexualmente.

Desfecho

O caso de Kat Torres, a falsa guru, ilustra os perigos do charlatanismo e da fraude, especialmente no campo da espiritualidade e do bem-estar, onde a vulnerabilidade das pessoas pode ser facilmente explorada. Utilizando carisma, habilidades de persuasão e seu alcance nas redes sociais, ela enganou seguidores com falsas promessas de cura e iluminação espiritual em troca de dinheiro e confiança.

Este episódio trágico revela a importância de buscar evidências científicas e consultar profissionais qualificados ao procurar soluções para problemas de saúde física, mental e emocional.

Nota

Este artigo foi redigido com base no Documentário da BBC News Brasil intitulado “Kat Torres: a guru do Instagram condenada por tráfico humano e escravidão”, divulgado em 14 de julho de 2024. Clique aqui para assisti-lo na íntegra.

Encontrou uma falha?

Rolar para cima